TIRE O SEU RACISMO DO CAMINHO QUE EU QUERO PASSAR COM A MINHA COR. Georges Najjar Jr

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Seis estatísticas que mostram o abismo racial no Brasil

No Brasil, a população negra é mais atingida pela violência, desemprego e falta de representatividade
Por Tory Oliveira Do Carta Capital
A população negra é a mais afetada pela desigualdade e pela violência no Brasil. É o que alerta a Organização das Nações Unidas (ONU). No mercado de trabalho, pretos e pardos enfrentam mais dificuldades na progressão da carreira, na igualdade salarial e são mais vulneráveis ao assédio moral, afirma o Ministério Público do Trabalho.
De acordo com o Atlas da Violência 2017, a população negra também corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios.
Ao ser confrontado com as estatísticas, o racismo brasileiro, sustentado em três séculos de escravidão e muitas vezes minimizados pela branquitude nativa, revela-se sem meias palavras.
“Esse é um país que convive com uma desigualdade estrutural, especialmente em relação à questão racial”, afirma Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam, em entrevista à CartaCapital. 
Oded Grajew, presidente do conselho deliberativo da organização, diz que o preconceito social no País passa também pelo racismo. “Só não concorda quem não acompanha o dia a dia da vida brasileira. Um negro que dirige um carro médio, por exemplo, é parado diversas vezes pela polícia, ou quando vai a um restaurante, avisam a ele que a entrada de serviço é do outro lado. Para curar qualquer doença, é preciso reconhecer a doença”, afirma.
Segundo o IBGE, mais da metade da população brasileira (54%) é de pretos ou pardos, sendo que a cada dez pessoas, três são mulheres negras.
Igualdade salarial só em 2089
Apenas em 2089, daqui a pelo menos 72 anos, brancos e negros terão uma renda equivalente no Brasil. A projeção é da pesquisa “A distância que nos une – Um retrato das Desigualdades Brasileiras” da ONG britânica Oxfam, dedicada a combater a pobreza e promover a justiça social.
Em média, os brasileiros brancos ganhavam, em 2015, o dobro do que os negros: R$1589, ante R$898 mensais.
“Só alcançaremos uma equiparação salarial entre negros e brancos em 2089, 200 anos depois da abolição da escravidão no Brasil. Isso se a desigualdade continuar diminuindo no ritmo que está”, alerta a diretora-executiva da Oxfam.
A conta é feita com base em dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), considerando rendimentos como salários, benefícios sociais, aposentadoria, aluguel de imóveis e aplicações financeiras, entre outros.
Ainda segundo o relatório, 67% dos negros no Brasil estão incluídos na parcela dos que recebem até 1,5 salário mínimo (cerca de R$1400). Entre os brancos, o índice fica em 45%.
Feminicídio de mulheres negras aumentou, das brancas caiu
O feminicídio, isto é, o assassinato de mulheres por sua condição de gênero, também tem cor no Brasil: atinge principalmente as mulheres negras. Entre 2003 e 2013, o número de mulheres negras assassinadas cresceu 54%, ao passo que o índice de feminicídios de brancas caiu 10% no mesmo período de tempo. Os dados são do Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais. Uma evidência de que os avanços nas políticas de enfrentamento à violência de gênero não podem fechar os olhos para o componente racial.
As mulheres negras também são mais vitimadas pela violência doméstica: 58,68%, de acordo com informações do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher, de 2015.
Elas também são mais atingidas pela violência obstétrica (65,4%) e pela mortalidade materna (53,6%), de acordo com dados do Ministério da Saúde e da Fiocruz.
Jovens e negros: as maiores vítimas da violência
Homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no País. A população negra corresponde a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios, de acordo com informações do Atlas da Violência 2017, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas, os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontado o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.
“Jovens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os anos como se vivessem em situação de guerra”, compara o estudo.
Maioria dos presos
O Brasil abriga a quarta maior população prisional do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Tratam-se de 622 mil brasileiros privados de liberdade, mais de 300 presos para cada 100 mil habitantes. Mais da metade (61,6%) são pretos e pardos, revela o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen).
Na contramão dos demais países, porém, a taxa de aprisionamento no Brasil não está diminuindo. Entre 2004 e 2014, o índice cresceu 67%. A taxa de superlotação por aqui também é maior: 147% no Brasil, ante 102% nos Estados Unidos e 82% na Rússia.
Baixa representatividade no cinema e na literatura
Só 10% dos livros brasileiros publicados entre 1965 e 2014 foram escritos por autores negros, afirma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) que também analisou os personagens retratados pela literatura nacional: 60% dos protagonistas são homens e 80% deles, brancos.
Já a pesquisa “A Cara do Cinema Nacional”, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, revelou que homens negros são só 2% dos diretores de filmes nacionais. Atrás das câmeras, não foi registrada nenhuma mulher negra. O fosso racial permanece entre os roteiristas: só 4% são negros.
O levantamento da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) considerou as produções brasileiras que alcançaram as maiores bilheterias entre 2002 e 2014. Dentre os filmes analisados, 31% tinham no elenco atores negros, quase sempre interpretando papeis associados à pobreza e criminalidade.
Crise e desemprego
A crise e a onda de desemprego também atingiu com mais força a população negra brasileira: eles são 63,7% dos desocupados, o que corresponde a 8,3 milhões de pessoas. Com isso, a taxa de desocupação de pretos e pardos ficou em 14,6% – entre os trabalhadores brancos, o índice é menor: 9,9%.
Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada nesta sexta-feira 17 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, no terceiro trimestre de 2017 o rendimento médio de trabalhadores negros foi inferior ao dos brancos: 1,5 mil ante 2,7 mil reais.

COISA DE PRETO: Nigeriano realiza sonho de abrir restaurante que reúne culinária e cultura de 54 países africanos no DF

‘Hakuna matata’, expressão em idioma suaíli que significa ‘não se preocupe’ é o lema do restaurante. Para o nigeriano que se tornou chefe de cozinha 2017 foi o ano da mudança.
Chidera Ifeanyi na fachada do restaurante africano aberto no DF (Foto: Marília Marques)

Viagem gastronômica

As origens dos pratos percorrem o continente de uma ponta a outra. O carro-chefe é o “yassa”, tradicionalmente servido no Senegal. Frango, muito molho, cebola, mostarda e um ingrediente especial – “segredo do chefe”, explica Chidera.
Tão famoso quanto, é o “fufu”. A massa macia, cozida e pouco temperada é preparada à base de milho, mandioca ou arroz, conforme a região. O bolo é comido com as mãos e também servido com molhos.
Okro soup e fufu, pratos servidos no restaurante africano no DF, Simbaz (Foto: Divulgação)
Na seção de entradas, o destaque do cardápio é a banana-da-terra, servida em forma de chips. Um outro prato conhecido dos brasileiros é o acará, o famoso bolinho de feijão fradinho, que no restaurante é frito em óleo de soja e não em azeite.
“Na Nigéria comemos ele puro, no café da manhã ou na janta.”

Molhos e temperos utilizados nos pratos de restaurante africano no DF (Foto: Divulgação)

Diversidade

Além da viagem gastronômica, a ideia do estabelecimento é mostrar aos frequentadores um pouco dos 54 países que compõem o continente e suas respectivas capitais.
“É uma forma de dar uma contribuição do Simbaz para a comunidade de Brasília”, diz Chidera.
Nas paredes, quadros pessoais representam países como o Benim e a Nigéria, terra de origem do jovem empresário. O objetivo, segundo ele, é “mostrar a África para brasileiros e para o mundo”, indo de encontro à invisibilidade imposta às culturas africanas por mais de dois séculos.
“Alguns vêm e não têm noção de como é a culinária africana. Veem a comida saborosa e a apresentação legal. A maioria não sabia que era assim.”
Com essa proposta, o empresário sonha em ampliar a utilização do espaço para oferecer também noites de conversação em inglês e em francês. Os idiomas são considerados oficiais em grande parte dos países da África, em razão das influências coloniais.
Os novos planos também incluem aulas de dança – kizomba e zouk –, um cineclube de filmes africanos e um bazar de roupas e tecidos tradicionais do continente.
Empresário pousa ao lado de quadro com mapa do continente africano (Foto: Marília Marques/G1)

Nigéria-Brasília

A história do Simbaz é carregada de significados pessoais, e revela um pouco da relação entre o Brasil e o continente africado. A chegada de Chidera Ifeanyi ao Brasil foi em 2008, acompanhado dos pais que vieram trabalhar no país.
Desde então, a capital federal se fez morada para a família. A veia empreendedora, segundo Chidera, é compartilhada com os irmãos, com quem divide a sociedade no restaurante.
O aprendizado do português para o falante nativo da língua inglesa aconteceu aos poucos. Ele conta que se tornou fluente em oito meses – o suficiente para conquistar também uma vaga no disputado curso de engenharia elétrica da Universidade de Brasília (UnB).
Com o tempo, o amor pela gastronomia foi superando o interesse pelos circuitos elétricos e o jovem de espírito inquieto passou a conciliar o curso da UnB com a formação técnica em gastronomia. O talento com a mistura de temperos levou o nigeriano a cozinhar, inclusive, para as delegações da Nigéria na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas Rio-2016.
Mapa do continente africano (Foto: Google/Reprodução)
A ideia de abrir o restaurante no DF se tornou mais forte em 2009, após uma viagem ao Canadá. No país norte-americano, Chidera lembra ter “andado muito” para encontrar uma churrascaria que servia o tradicional churrasco africano, com temperos muito específicos.
Na volta ao Brasil, o desejo começou a se desenhar melhor, mas era desestimulado por quem dizia que “em Brasília não seria aceito”, relembra ele. Desde então, planos e metas foram amadurecidas até julho deste ano, quando o Simbaz ganhou sede fixa, identidade e clientela, “somente no boca a boca” completa o empreendedor.

Leilão de escravos na Líbia causa indignação em toda a África

The Treeq Alsika Migrant Detention Center in Tripoli, where some migrants are held by Libyan authorities before they are repatriated.

Jovens africanos na rota migratória para a Europa, vendidos em leilões como escravos, surrados, sequestrados em troca de resgate. Isso há anos acontece na Líbia. Organizações sociais e as próprias vítimas já denunciaram várias vezes, com pouca repercussão. Entretanto, um vídeo contando como funciona esse mercado de seres humanos, divulgado há uma semana pela rede CNN, gerou uma onda de indignação na África.

Os presidentes da África ocidental, a região de origem da maior parte dos migrantes, reagiram com firmeza. O primeiro foi Mahamadou Issoufou (Níger), que solicitou uma investigação ao Tribunal Penal Internacional e convocou seu embaixador na Líbia para consultas. Idêntica decisão tomou Roch Kaboré (Burkina Faso), junto com um apelo às autoridades líbias para que atuem. O Governo senegalês exigiu uma investigação pelo que o presidente malinês, Ibrahim Boubacar Keita, denominou de “barbárie que interpela a consciência de toda a humanidade”. Todos solicitaram à União Europeia, à União Africana e às Nações Unidas que intervenham de uma vez.
Até o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, declara-se “horrorizado” e não descarta a possibilidade de processar os responsáveis por crimes contra a humanidade. “A escravidão não tem lugar em nosso mundo”, disse Guterres nesta segunda-feira, “isto nos recorda da necessidade de abordar os fluxos migratórios de maneira global e humana (…) e reforçar a cooperação internacional para reprimir os atravessadores e traficantes, e para proteger os direitos de suas vítimas”. O Governo de unidade nacional da Líbia anunciou a abertura de um inquérito.

A sociedade civil africana também elevou a voz. Os mais midiáticos foram os jogadores de futebol que atuam na Europa, encabeçados por Geoffrey Kondogbia, atleta do Valencia de origem centro-africana, que neste domingo, durante um jogo contra o Espanyol, ostentou uma camiseta com os dizeres: “Futebol à parte, não estou à venda”. Da Inglaterra, o franco-guineano Paul Pogba, astro do Manchester United, pedia em seu perfil do Twitter “que esta crueldade acabe”. Tanto Pogba como Cheick Doukouré, jogador do Levante, comemoraram seus gols com um gesto expressivo, unindo seus antebraços como se estivessem atados.
No Twitter, as hashtags #stopslavery e #StopEsclavageEnLibye (“parem a escravidão” e “parem a escravidão na Líbia”) estão aglutinando as mensagens de uma campanha que foi sendo orquestrada aqui e ali, sob a liderança de artistas, intelectuais e ativistas que criticam a Líbia, mas também a União Europeia, acusada de cumplicidade com o regime desse país africano, “eleito como sócio encarregado de assegurar a fronteira sul da Europa”, segundo um manifesto assinado, entre outros, pelos cantores Tiken Jah Fakoly, Salif Keita e Angelique Kidjo, pelo ator Omar Sy, pelo ciberativista Cheik Fall, pelo escritor Alain Mabanckou e pelo ex-tenista Yannick Noah. “Senhores presidentes, estamos estupefatos por seu silêncio”, afirmou o conhecido cantor de reggae Alpha Blondy há alguns dias.
Neste sábado, cerca de mil pessoas saíram às ruas de Paris sob o lema “não à escravidão na Líbia”, enquanto os países começam a adotar medidas. Seguindo o conselho da União Africana, a Costa do Marfim decidiu repatriar no fim de semana 155 migrantes que estavam retidos em um centro de detenção de Zouara, no oeste da Líbia. Os jovens, incluindo 89 mulheres e vários menores de idade, desembarcaram na segunda-feira no aeroporto de Abidjã e se beneficiarão de programas de ajuda financiados pela União Europeia.
 - EL PAÍS

CULTURA NEGRA: Tragam-me a cabeça de Lima Barreto



Ancorado no tripé loucura, racismo e eugenia, monólogo com o ator Hilton Cobra homenageia o escritor
Por Rosane Borges, da Carta Capital 
Ninguém põe em dúvida.
Entre as marcas que vincam o já envelhecido 2017, podemos pôr em destaque a luz do holofote que se projetou sobre o escritor Lima Barreto. Jorraram em profusão biografias (inéditas e reeditadas), láureas e homenagens, com a Flip sintetizando a pompa e a circunstância.
Soerguendo-se do pântano para o qual a crítica literária o empurrou, Lima converteu-se na pérola mais preciosa da ostra extraída das águas tormentosas deste ano.
Eis que em meio às homenagens e publicações, a peça “Traga-me a cabeça de Lima Barreto”, monólogo em que o ator Hilton Cobra celebra os seus 40 anos de carreira, se encarrega de nos dar a ver um escritor ancorado nos dilemas/problemas/desafios nucleares que desenharam os contornos de um Rio de Janeiro (capital da Primeira República e da cultura literária do país) ávido pelos ventos da modernidade que sopravam mundo a fora ao mesmo tempo em que não se desapegava de um servilismo escravocrata, de uma aversão aos ideais republicanos.
É nesta atmosfera anfíbia que Lima Barreto transita, refletindo as ambivalências de seu tempo (crítico ácido do sistema, o escritor dos excluídos não se deixava tosquiar feito um carneiro, mas também exigia, paradoxalmente, reconhecimento das estruturas pelas quais alimentava repulsa, postulava reconhecimento da Academia Brasileira de Letras).
São vários os enquadramentos possíveis para se ter acesso ao escritor. “Traga-me a cabeça…” o faz apoiando-se de maneira equilibrada no tripé loucura – racismo – eugenia. Em tom abreviado, a peça discorre sobre uma imaginária sessão de autópsia do crânio de Lima Barreto, conduzida por médicos eugenistas na década de trinta. A pergunta que movia os higienistas era: “como um cérebro considerado inferior poderia ter produzido uma obra literária de porte se o privilégio da arte nobre e da boa escrita é das raças tidas como superiores?”
A partir deste questionamento, o monólogo revolve as várias camadas de um escritor que foi reconhecido pelo establishment durante muito tempo tão-somente pela chave da literatura social como o porta-voz dos que nada têm. Tal “reconhecimento” deu de ombros para a riqueza formal de sua obra, cego à inventividade dos seus textos (mito que a Flip se encarregou de desfazer, enfatizando que a escrita de Lima inspirou toda uma linhagem da literatura em língua portuguesa).
Este é dos tópicos essenciais da peça, que reatualiza as proverbiais comparações entre Machado de Assis e Lima Barreto (e, neste caso, o próprio Lima se encarrega da zombaria), ao modo como se fez com Tolstói-Dostoiévski, Saramago-Lobo Antunes. Talvez seja esse um dos pontos de conexão que enovelam o trípé loucura, racismo e eugenia.
A loucura de Lima Barreto que acessamos por meio da peça não é apenas fruto do racismo e suas interdições, ainda que potencializadores de uma vida infausta (não podemos esquecer de suas agruras: pelas críticas à imprensa no livro Recordações do escrivão Isaías Camina, é excluído do quadro de colaboradores do “Correio da Manhã” e seu nome vira um interdito nas páginas do jornal, mesmo trinta anos depois de sua morte).
É também uma loucura genial, tal como a de um James Joyce ou de um Samuel Beckett. É uma loucura “herdada” do pai. É uma loucura que sai pelo mundo tentando agenciar novos/outros arranjos capazes de enfrentar as dificuldades de uma vida talhada pelas consequências dos frames que foram emoldurando a trajetória do escritor (arrimo de família em virtude da neurastenia do pai, abandono da Escola Politécnica, alcoolismo…). Consciente de sua condição vulnerável, anunciava: “Se em vida me submeti às mais sórdidas humilhações, em morte não cederei”
O racismo, sempre ele, cimenta uma plataforma em que, progressivamente, Lima Barreto vai sendo expelido de uma cena literária que se espelhava nas “belas letras europeias”, resistente a ceder espaço aos subalternizados e excluídos. A eugenia era o projeto que poderia assegurar o bloqueio dos indesejados na gestão do comum, nos destinos da vida nacional. Mas Lima resiste, não cede, mesmo pagando um preço altíssimo por isso, margeando terreno minado por essa ordem de coisas, abrindo, para um tempo futuro, uma avenida à estreita margem de manobra imposta a ele.
A peça, o ator, o teatro
O que dizer da peça “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” para além de qualificá-la como uma homenagem ao escritor sob determinados prismas? Muitas coisas e um pouco mais. Em termos estritamente cênicos, o monólogo marca o reencontro do ator Hilton Cobra com a obra do escritor.
Em 2008 o ator, produtor cultural e fundador da companhia teatral Comuns protagonizou a versão cênica de Luiz Marfuz para O triste fim de Policarpo Quaresma.
Também escrita por Luiz Marfuz e dirigida por Fernanda Júlia, “Traga-me a cabeça de Lima Barreto” cerca-se de especialistas de altíssimo gabarito (entre eles, Lázaro Ramos é um dos que emprestam sua voz para a leitura em off de textos de apoio à cena) e nos brinda com uma das melhores formas de se reeditar as discussões entre arte e política.
A performance de Hilton Cobra é uma esplêndida feitura de como o teatro, em sendo arte, pode oferecer uma brecha para reposicionar a vida em outro patamar. Desde a caverna de Platão até as críticas contemporâneas da sociedade do espetáculo uma questão acompanha, como pedra no sapato, o papel do teatro em relação ao espectador: liberar os dominados das ilusões.
“Traga-me a cabeça…” faz diferente. Ao invés de laborar em torno de uma pedagogia do olhar, o monólogo nos provoca a enxergar um Lima Barreto, entre vários possíveis, com olhos de ver. Antes de considerar que “quem vê não sabe ver”, pactua com a plateia um deslocamento. O monólogo pede vênia a Lima Barreto e, com esse gesto, nos faz reconhecer a alta magnificência de um ator que, do do alto dos seus 40 anos de carreira, perturba a boa rotina do mundo.




Ensino da cultura afro-brasileira nas escolas iria salvar o Brasil do racismo

Racismo no Brasil é bem escancarado e nítido”, destaca professora de história
 Nesta sexta-feira (20), celebra-se em algumas cidades brasileiras o Dia da Consciência Negra. Uma data marcada para refletir e discutir sobre o preconceito racial que ainda está muito presente no cotidiano brasileiro.
A reportagem do R7 conversou com o secretário especial de políticas de promoção da igualdade racial da Presidência, Ronaldo Barros, que alerta que “o número de mortes de jovens negros no Brasil é maior do que em regiões em guerra”. Segundo ele, as mortes de jovens negros já chegam a 70 mil por ano no Brasil.
Reflexo de “um sistema de desigualdade racial”, como sugere Barros, o Brasil ainda tem muito para avançar nesse aspecto. “O racismo mata. O preconceito racial é algo que já é concebido e estigmatizado. Ele está na construção mental do brasileiro. As pessoas operam o racismo antes de qualquer reflexão”, alerta.
Barros destaca que “o pensamento racista é irracional e funciona como uma compulsão. Isso faz com que, algumas pessoas, sempre associem o negro a coisas negativas e cria a vontade de que eles sejam excluídos da sociedade”, e isto é real no dia-a-dia.
Racismo é escancarado
O R7 também entrevistou Juliana Serzedello Lopes, professora de história. A docente alerta que o racismo no país “é escancarado”. Mas também é “envergonhado”, pois “quando vemos as estatísticas de não escolaridade, de uso de drogas, de prisão, todos esses índices ‘ruins’, a população mais afetada é dos negros”.
“Então temos um racismo que é bem escancarado, nítido”, pontua.
O secretário Barros concorda com o pensamento da historiadora e explica que, muitas vezes, “o racista pensa que não é racista e não acredita que ele pode ser defensável e, por isso, acaba reproduzindo a fala de que o racismo não existe no País”.
“Como ele não sofre o racismo, ele não sente o racismo. O problema é encoberto. Construções ideológicas tentam “maquiar” o racismo, mas ele é um mecanismo perverso de exclusão e violência”, explica o secretário.
A elite do País, segundo a historiadora, é racista e tem vergonha de dizer publicamente o que pensa, o que não quer dizer que é menos racista por isso. “A nossa elite é racista e não é de hoje. O que eu lamento é que, em vez de enfrentar o debate, os covardes publicam atrás de portas de banheiros”.
Ensino da cultura afro-brasileira nas escolas
De acordo com a professora, “falta de um combate direto” ao racismo no Brasil e, isso faz com que a situação continue se perpetuando. Juliana destaca que é preciso punir as pessoas que fazem declarações racistas. No entanto, é mais relevante ainda que a lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas, seja colocada em prática para garantir uma resolução em longo prazo.
“Porque, aí sim, teríamos profissionais em todas as áreas que iam saber a importância do negro e do índio no Brasil”, ressalta a professora ao R7.
Barros concorda que as leis (como a citada pela professora e a lei de cotas) são fundamentais para que todos entendam como a cultura afro contribuiu para a nossa sociedade. Porém, ele garante que também é preciso uma mudança cultural.
“O Brasil precisa avançar no mundo privado. A lei assegura um estado de direito, mas é preciso uma nova compreensão. É preciso que as pessoas reflitam sobre as mazelas que o racismo causa”, finaliza.

Desigualdade como legado da escravidão no Brasil

Impactos de séculos de utilização da mão de obra escrava repercutem nas dimensões social e econômica do país
Por Maria Teresa Manfredo
Trazidos da África desde o início do século XVI, trabalhadores escravos negros tiveram importante papel na economia do Brasil até o século XIX e ajudaram a compor nossa cultura. Embora os números da chamada “diáspora africana” não sejam precisos, é consenso que nosso país foi o destino mais frequente dos milhões de homens e mulheres feitos cativos no continente africano, por mais de trezentos anos (veja infográfico). “As relações escravistas no Brasil foram complexas e seus impactos culturais são inúmeros”, afirma Leandro Jorge Daronco, doutor em História e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha (IF – Campus Santa Rosa, RS).
É preciso lançar pelo menos dois olhares sobre os legados da escravidão no Brasil, segundo o historiador. O primeiro ponto seria os aspectos formadores da cultura, da identidade e da etnicidade brasileiras, pois o negro africano constitui um dos pilares étnicos de nossa formação social e cultural. Sua contribuição está imbricada na cultura geral, na religiosidade, na multiculturalidade étnica, na culinária, na musicalidade, na dança e nas demais expressões artísticas.
O segundo ponto seria a presença determinante do trabalho negro nos principais ciclos produtivos da história brasileira: açúcar, ouro, pecuária, café, entre outros. O escravo tornou-se imprescindível ao funcionamento da colônia e, mais tarde, do Brasil Imperial. Ao mesmo tempo, a escravidão produziu mazelas históricas em nosso país que dificilmente poderão ser reparadas. Uma dessas marcas é a segregação étnico-racial.
Democracia racial
Após a abolição, a segregação dos negros foi estrategicamente silenciosa. “Os problemas de racismo historicamente ocorridos no Brasil foram cobertos por uma roupagem demagógica e hipócrita que não contribui para enfrentá-los, a exemplo do ocorrido nos Estados Unidos ou na África do Sul. Nosso ‘apartheid’ continua invisível”, afirma Daronco.
O pesquisador aponta que o negro pós-abolição percebeu-se com a vida cerceada, desprovido de terra, do acesso à educação e, em muitos casos, de qualificação profissional. “Restou àqueles milhões de africanos e afro-brasileiros ‘sem sobrenome’ buscar as periferias urbanas como local de moradia, o trabalho nas estradas de ferro, nas docas, ou permanecer junto a seus antigos senhores em situação muito semelhante à vida dos tempos de escravidão.”
Além disso, os governos republicanos que se seguiram, muitas vezes influenciados por noções difundidas por intelectuais brasileiros, disseminaram a ideia de uma “democracia racial” em nosso país. O historiador, sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre, nos livros Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mocambos, deu sua colaboração para isso. O conceito de democracia racial retira a escravidão da ótica da dominação. O mestiço afro-brasileiro comprovaria a mistura entre os diferentes em nosso país, atestando, assim, que não somos racistas. Daronco explica que, a partir da ideia de que vivemos numa democracia racial, “o preconceito e o racismo foram escamoteados pela visão idealizada de um passado de relação harmônica entre os diversos grupos étnicos que se encontraram aqui”.
Daniela do Carmo Kabengele, doutora em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), destaca que, na educação, no mercado de trabalho, na política e em outras importantes esferas da sociedade brasileira, a população negra tem menos oportunidades que a população branca. Esse fato seria estrutural, estruturante e histórico em nosso país. “O racismo se faz presente no Brasil há muito tempo, de maneira particular e na maior parte das vezes encoberta”, relata.

Naturalização da desigualdade

Uma herança da escravidão particularmente sentida até os dias atuais seria a naturalização da desigualdade em nossa sociedade, explica Ricardo Alexandre Ferreira, doutor em História e professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Campus Franca). O Brasil do século XIX passou a manejar os novos ideais de liberdade e igualdade apregoados no mundo ocidental e, ao mesmo tempo, manteve em seus quadros legais a escravidão dos africanos. Nascia um país “moderno” que afirmava não poder se desvencilhar imediatamente do cativeiro. Nascia um país “livre e igual”, composto por meios cidadãos (os ex-escravos ou libertos) e não cidadãos (os cativos). “Esse legado, não menos importante do que os vinculados à arte, à culinária, à construção de edificações, à religião, enfim, ao desenvolvimento de uma cultura mestiça, acabou por nos marcar efetivamente como um povo que tem desigualdade enraizada em sua cultura”, pontua Ferreira.
A naturalização da desigualdade social é tratada no livro A Ralé Brasileira, de Jessé Souza, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que o autor expõe o drama histórico da sociedade brasileira: a reprodução de uma sociedade que considera normal e aceitável ter “gente” de um lado e “subgente” de outro; uma sociedade discriminatória que classifica seres humanos em diferentes categorias, de acordo com sua posição econômica.
Acontece que, no Brasil, por processos históricos ligados à escravidão, a desigualdade social está muito atrelada à questão étnico-racial. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 1995 a 2005, acerca de especificidades da situação social do negro no Brasil, ao longo de toda a vida, a população negra é a que mais sofre com o mau atendimento do sistema de saúde e termina por viver menos.
Devido à situação de pobreza em que a população negra está majoritariamente inserida, bebês negros nascem com peso inferior a bebês brancos e têm maior probabilidade de morrer antes de completarem um ano de idade, além de menor probabilidade de frequentar uma creche. São também os brasileiros negros que apresentam as mais altas taxas de repetência na escola, o que muitas vezes os leva a abandonar os estudos em níveis educacionais inferiores aos dos brancos.
Jovens negros morrem de forma violenta em maior número que jovens brancos e têm probabilidades menores de encontrar um emprego. Quando empregados, recebem menos da metade do salário pago aos brancos, aposentam-se mais tarde e com rendimentos inferiores.
No que diz respeito ao quadro pós-abolição, Daronco lembra que, enquanto negros norte-americanos eram segregados no emprego, grande parcela dos negros brasileiros eram segregados do emprego. O mundo do trabalho brasileiro foi perverso com os africanos e afrodescendentes livres. Décadas foram necessárias para amenizar as mazelas provocadas pela escravidão. Mesmo assim, os números ainda são implacáveis quando se trata de estabelecer parâmetros sobre os negros e pardos no Brasil: índices de escolaridade, empregabilidade, vulnerabilidade social, entre outros, denunciam o legado desigualdade da nossa história.

Tentativas de suprir as desigualdades étnico-raciais

Observam-se, sobretudo na última década, tentativas de redução das desigualdades étnico-raciais em nosso país, expressas principalmente por políticas públicas afirmativas. Um exemplo desse tipo de política, conhecido também como “discriminação positiva”, é o sistema de cotas universitárias, aprovado pelo Senado brasileiro e sancionado pela presidência em agosto deste ano.
O sistema determina cotas raciais e sociais nas universidades públicas federais de todo o país, devendo ser metade das vagas nas universidades separadas para tais cotas (25% do total de vagas destinados aos estudantes negros, pardos ou indígenas, de acordo com a proporção dessas populações em cada Estado, e 25% destinados aos estudantes que tenham feito todo o segundo grau em escolas públicas e cujas famílias tenham renda per capita de até um salário mínimo e meio).
Contudo, alguns argumentos contrários à adoção desse sistema pregam que as cotas vão fazer de nossa sociedade uma sociedade racista. Nesse sentido, Daniela Kabengele pondera: “ora, se é certo que o Brasil não experienciou, stricto sensu, o apartheid, como a África do Sul, nem as políticas abertamente discriminatórias observadas nos Estados Unidos até 1964, certo também é que o Brasil está longe de ser uma democracia racial”. A antropóloga destaca que as cotas permitem colocar em debate a presença desse racismo à brasileira e defende que as mesmas funcionam como uma profícua medida antirracista.
Além disso, “estudos têm mostrado que os cotistas consideram cotas uma conquista democrática e, nesse registro, manifestam orgulho por sua condição. Os cotistas das universidades que adotaram o sistema – tais como a Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade de Brasília (UnB) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb) – tiveram desempenhos iguais e até superiores aos não cotistas”, explica.
A criação, em 2003, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), órgão do Poder Executivo, demonstra a importância dos problemas atuais envolvendo a desigualdade e o preconceito no país. Assinala, também, que o efetivo alcance da democracia é um assunto tão complexo e difícil como a relação do negro com a História do Brasil.
Fonte: Univesp